Diferenças entre edições de "Sacrifícios Taurinos"

 
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Edição atual desde as 02h10min de 10 de fevereiro de 2022


TOIROS DE MORTE EM BARRANCOS

António Pica Tereno
Licenciado em História / Presidente da Câmara Municipal de Barrancos durante vinte anos

Breve descrição e enquadramento


Forma de tauromaquia popular desde tempos imemoriais, possivelmente com mais de trezentos anos, que passou de geração em geração muito pela memória oral, se bem que existem registos fotográficos de finais do século XIX, e relatos de Comissões de Festas do início do século XX, que atestam a importância que as corridas de touros já tinham na época, mostrando também a mesma praça de hoje que se transcende, que muda totalmente de aspecto com os tabuados a dar-lhe uma nova e distinta fisionomia. As Festas perdem-se no tempo, mas têm lugar sempre nos últimos dias de Agosto e sempre em honra da padroeira deste concelho.

Barrancos é uma Vila Portuguesa, alentejana, pertencente ao distrito de Beja, cidade da qual dista cerca de 100 Kms, e faz fronteira com Espanha, nomeadamente com Encinasola, que é a povoação mais próxima, Oliva de la Frontera e Valência del Mombuey, e também com o distrito de Évora.

O Concelho do mesmo nome com a superfície de 168 Kms2, está situado nos contrafortes da “Sierra Morena” que se estende desde Jaén em Espanha e vem terminar neste território. Sendo um município de fronteira com uma Identidade Cultural muito característica, com fortes tradições, com usos e costumes enraizados na população que denotam uma clara influência da Andaluzia e da Extremadura espanholas, a tradição taurina ligada ao culto de Nossa Senhora da Conceição que perdura nos nossos dias tem a sua razão de ser, até porque:

“No fundo a tourada de Barrancos não é fruto do acaso ou da vontade deste ou daquele. Tem um tempo e uma lógica. O tempo é o da Festa em honra de Nossa senhora da Conceição. A lógica tem-se alterado com o tempo. Há cem anos era o tempo de se comer carne de toiro, luxo permitido uma vez por ano. Hoje em dia a tradição e, acima de tudo o manter da coesão social da comunidade Barranquenha.” (in: “Tabuados de Barrancos: uma praça com identidade – Arenas do Tejo”)

As suas origens, podemos situá-las por volta dos séculos XII e XIII, conforme o atestam documentos da época. Na altura Barrancos era uma aldeia do termo da Vila e fortaleza de Noudar, inserida numa região que terá sido conquistada aos mouros por Gonçalo Mendes da Maia ao serviço do rei D. Afonso Henriques em 1167, integrando definitivamente o reino português por carta de Doação de 4 de Março de 1283, em que Afonso X, Rei de Castela, entrega Noudar e Barrancos a D. Beatriz, sua filha.

Actualmente, com cerca de 2000 habitantes, a Vila de Barrancos dotada de uma autonomia moral muito forte como definia os Barranquenhos, o Professor Leite de Vasconcelos na sua obra “Filologia Barranquenha”, estudo que fez sobre a língua falada por estes, continua a defender as suas tradições e a sua Identidade Cultural de que são expoentes: a língua Barranquenha; os cantares alentejanos e os Villancicos andaluzes (cânticos de Natal dedicados ao Menino Jesus e à Virgem Maria), em volta da fogueira comunitária de Natal (o Lume); o cantar dos Quintos (que tinham lugar quando os mancebos iam às sortes e eram escolhidos para a vida militar, e que a juventude teima em manter) e as tradicionais touradas com touros de morte na praça da Liberdade (in: Luís Capucha, “Barrancos na Ribalta, ou a Metáfora de um País em Mudança”), que são o expoente máximo das suas Festas de Agosto.


O que nos distingue enquanto Tauromaquia


Tauromaquia popular ligada ao mundo rural em que se insere, a “Tourada à Barranquenha”, é uma afirmação da nossa diferença cultural que tem que ser respeitada. O povo Barranquenho, como povo de fronteira, sempre sofreu influências culturais da vizinha Espanha e disso podem ser exemplos como já foi referido: a Língua Barranquenha; os usos e costumes e a própria tradição de matar os touros após a lide na arena, neste caso, na improvisada arena com os “Tabuados”, construída na praça principal da Vila.



Os tabuados

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Prática ancestral de construção com madeiros assentes em covas feitas na calçada e presos entre si hoje com parafusos, antes pregos, dispostos na vertical e na horizontal, que altera a imagem quotidiana da própria praça principal de Barrancos. Cobrindo os edifícios dos Correios, das Finanças e até da própria Igreja Paroquial, o mesmo resulta num conjunto harmonioso, um sistema de equilíbrio de forças que permite além de vedar a improvisada praça de touros, acolher debaixo da armação de pranchas de madeira apoiadas em madeiros colocados na vertical e ligados entre si, centenas de pessoas de menos posses que não pagam nada. Em cima desta estrutura dividida em vários espaços também denominados “tabuados” (o da Música, que acolhe a banda e os convidados da Câmara Municipal, apoderados e familiares dos matadores, e os restantes tabuados), as pessoas pagam a entrada que reverte para a Comissão de Festas e ajuda a pagar a própria Festa. A Praça da Liberdade transfigura-se e torna-se um rectângulo cujo piso se vai encher de areia, acolhendo os encerros pela manhã, e as touradas pela tarde, o prato forte das Festas de Barrancos.

Tabuados – Património Cultural como defendia o arqueólogo e Prémio Pessoa, Dr. Cláudio Torres. É uma estrutura única feita por mestres construtores que dominam a arte da carpintaria, um saber que vai passando de pais para filhos, é agora executada pelos trabalhadores do Município, perfeitamente de acordo com as mais elementares regras de segurança.

Pode-se afirmar que este é um emblema identitário desta terra. Tudo gira em torno destes, desde os encerros pela manhã, às touradas pela tarde, até aos espectáculos nocturnos, onde os tabuados servem de plateia para a grande moldura humana.


Fêra de Agosto


“Em Barrancos sem Touros não há Fêra”.

Esta é uma expressão que define o orgulho e o sentir taurino dos Barranquenhos.

O sentimento de pertença, de defesa do legado dos nossos antepassados ao longo dos séculos, a passagem do testemunho de geração em geração. Talvez não haja uma explicação científica para justificar o porquê desta tradição que perdura, mas há um sentir colectivo que se renova ano após ano, que irmana velhos e novos no desejo intenso de viver e voltar a viver a sua/nossa “Fêra”. Esta é uma manifestação cultural que se perde no tempo, mas sempre ligada ao touro como elemento principal dos festejos que a integram desde sempre e que continua “nas bocas do mundo”, nas conversas de café, nos círculos de amigos ausentes e residentes, na Praça, nas Sociedades e no quotidiano das famílias com realce para as crianças que falam e esperam ansiosamente pelo próximo “Agosto mágico” que lhes enche a cabeça de sonhos.

São quatro dias e quatro noites que marcam os últimos dias de Agosto, intensamente vividos e em que o centro de todas as atenções é o touro. É o renascer do mito tornado realidade, é o reencontro de todos os Barranquenhos residentes e da diáspora e de todos os amigos que se juntam em Barrancos na afirmação de uma solidariedade activa, de confraternização e da vivência em toda a sua plenitude.

É sempre de 28 a 31 de Agosto, que finaliza um percurso que se inicia após cada feira que passa. Nesses dias é o culminar de um longo caminho percorrido pelos festeiros e população angariando fundos para fazer no ano seguinte uma Festa com maior brilho ainda.

Antes era o tempo de viver a ruralidade no seu esplendor, era a reunião do campo com a Vila. Todos os que trabalhavam nas herdades e nos “montes” e que disso faziam modo de vida, regressavam à Vila para festejarem a sua padroeira Nossa Senhora da Conceição e os cultos ligados ao touro bravo. Era o merecido descanso, era o ansiado reencontro, era a suprema fruição da Festa que os motivou ao longo do ano.

No ano de 1914, foi a excepção na data de realização da “Fêra”, em vez dos habituais 28, 29, 30 e 31 de Agosto como mandava o costume e a tradição, foi a realização da mesma adiada para os dias 6, 12, 13 e 14 de Setembro, devido à “má impreção que causou em todos os espíritos o rebentar da guerra Europea que teve logar n’ esses dias” (in: “Balancete da Comissão de Festas de 1914”).

Convém realçar a função social da tourada, salientando que as festividades de então tiveram um carácter solidário e benéfico como referido no documento acima mencionado, em que além do êxito das próprias touradas foi distribuído um “Bodo aos pobres” em que a carne de 2 touros lidados foi distribuída por 112 pobres, e o valor da arrematação de outros 2 touros foi distribuído também pelos pobres. Além disto foi entregue ao médico de então, Dr. Filipe de Figueiredo, o saldo das Festas, “para empregar no que julgue mais necessário para o consultório dos pobres d’ esta Vila”.

A feira anual de Barrancos em honra de Nossa Senhora da Conceição, padroeira desta Vila, é um ciclo que se repete continuamente, e o Bibo, tamborileiro tocando gaita e tambor que sai no dia 14 de Agosto à tarde marca o início oficial das festividades, saindo de novo acompanhado pelos festeiros no dia seguinte, dia de Santa Maria, a percorrer as ruas da Vila fazendo o peditório e recolhendo as ofertas dos habitantes que serão leiloadas à noite. Tudo reverterá para fazer face aos custos com as touradas e com os espectáculos que completarão a Festa. Nos dias que se seguem vão chegando mais Barranquenhos ausentes e muitos amigos, que vão dando mais colorido às ruas da Vila.

Passados uns dias, começa a construção dos “Tabuados” na Praça, emblema desta Terra e onde tudo se passa durante as Festas. Centro do Universo como a definia o grande escritor alentejano, Fialho de Almeida.

Vem o despontar da manhã de dia 28 de Agosto com a alvorada tocada pela Banda Filarmónica “Fim de Século” e começa o ciclo festivo!

Segue-se a missa solene na Igreja Paroquial em que são entronizados os novos festeiros, cuja missão será já ajudar os actuais, aprendendo assim a sua função que os vai ocupar até à próxima feira. Antes em número de três, situação que vigorava no longínquo ano de 1914 (Presidente, Secretário e Tesoureiro), passando depois a cinco membros, situação que se manteve até 2017 em que o número foi aumentado. Organizam no tempo que decorre entre uma feira e outra, todo o tipo de iniciativas (espectáculos, bailes, concertos, vacadas, etc.), para angariar fundos para fazer a próxima Festa.

Entretanto, conduzidos pelos vaqueiros a pé (antes conduzidos a cavalo, desde as Courelas passando pelas Bicas até chegar à arena improvisada) chegam os “cabrestos” à Praça, bois mansos que vão reconhecer o caminho do encerro que irão fazer no dia seguinte.

À tarde, depois do convívio nas Sociedades e cafés, os foguetes anunciam a saída da procissão em honra de Nossa Senhora da Conceição, congregando muitas centenas de fiéis que irão percorrer as principais ruas da povoação, debaixo de um sol abrasador de Verão e durante a qual homens, mulheres e crianças acompanharão e venerarão com fervor a sua Padroeira. A banda de música “Fim de Século” acompanhará e abrilhantará o cortejo religioso tocando marchas adequada ao acto, e no hino em louvor da padroeira todos entoarão com fervor os acordes que a banda toca. Terminada a mesma em apoteose dá-se a despedida e é o tempo dos espectáculos na Praça, onde é instalado um palco e o som que vão permitir que a alegria seja palavra de ordem, com os coros rocieros, ou de música popular portuguesa, com as músicas tanto espanholas como portuguesas, a invadir aquele recinto mágico, literalmente ocupado por uma multidão que participa, desfruta e vive momentos únicos de cor e alegria. Acabados estes, segue-se o baile no Quintalão de Festas, com orquestras espanholas que vão derramar o seu reportório com as últimas novidades das canções de verão, com pasodobles, cumbias, rancheras, tangos, boleros e tantos outros estilos de música, com os pares dançantes na pista cheia e em que não cabe nem uma agulha. As horas vão correndo, mas o baile e a confraternização não pára esperando que chegue o encerro do dia seguinte.


Encerros e Touradas

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Chegado o primeiro encerro, no dia 29, às oito da manhã, com a íngreme Rua da Igreja inundada de gente de todas as idades, alguns sentados no empedrado a descansar de uma noite, que foi longa em que se bebeu e cantou. O primeiro foguete anuncia a saída do primeiro touro e a rua como que se esvazia por milagre. A própria praça até há pouco tempo barulhenta como que suspende a respiração e todos correm a buscar o seu lugar nos Tabuados, nas Sociedades, nas Torneiras (Burladeros), ou nos madeiros, nos sítios mais seguros, que o medo é muito! O toiro que será esperado, ora pelos mais afoitos querendo mostrar os seus dotes toureiros pela rua, ora pelos aficionados que já estão na Praça, desponta ao fundo da rua e começam os moços a gritar Ahí viene! Ahí viene!. Durante o percurso alguns mais valentes tentam toureá-lo, e raro é não haver algum susto ou alguma colhida, que depois andará no “Mentidero” ou nas bocas do mundo.

Passada que foi a “portada” do lado da Igreja pelo toiro e já com os madeiros corridos, poucos serão os que tentam fazer alguma pega devido ao respeito que o animal impõe. Ouvem-se gritos quando algum mais destemido passa diante e o toureia, até que passado algum tempo, vaqueiros com larga experiência vão com a corda tentar laçá-lo. Depois de várias tentativas o animal é laçado e encerrado nos curros preparados debaixo dos tabuados. Repetir-se-á o encerro com o segundo toiro e só depois de encerrado o mesmo, as pessoas abandonarão os tabuados e a Praça. Aí esperarão para a tourada da tarde.

O meio-dia aproxima-se é a hora do copo com os amigos, do almoço com a família, dos cantes alentejanos entoados com maestria nas Sociedades e nos bares, na confraternização entre naturais e forasteiros. Resta aguardar com impaciência a hora da tourada, o momento mais esperado debaixo de um sol que nos abrasa. Ninguém arreda pé da Praça. As pessoas circulam falando com os conhecidos, ocupam os seus lugares nos tabuados e a moldura humana vai-se compondo. Depois de a arena ser devidamente regada pelos Bombeiros tem lugar o Paseillo, com os espadas e suas quadrilhas. Começa a lide que comporta os Tércios: de Capote em que o matador ou o novilheiro experimenta os mais variados lances como chicuelinas, verónicas, gaoneras, etc; de Bandarilhas em que os bandarilheiros ou os matadores põem normalmente três pares de bandarilhas, normalmente acompanhadas pela música, quando o matador vai bandarilhar; e o de Muleta em que o matador tenta bordar com a muleta uma bela e artística “faena” empregando toda a sua valentia, e finalizando com uma certeira e mortal estocada.

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É nos madeiros salientes do tabuado que os jovens se irão pendurar quando o touro investe e passa por eles no encerro, e na tourada. É uma forma de mostrarem a sua destreza e a sua valentia perante o animal mítico, enquanto assistem às “faenas” dos matadores presentes, à sorte de bandarilhas e ao momento supremo em que a espada, qual ritual sagrado, cumpre a sua função e o touro é morto. Depois é o momento da apoteose dos toureiros, com a volta à arena passeando os troféus conquistados (rabo e orelhas do animal), e a ansiada saída em ombros.

Como testemunho da importância da Praça de Barrancos, por esta passaram diestros famosos como: José Rodriguéz Baez “Litri II”; Juan Garcia “Mondeño”; Amadeu dos Anjos; José Simões; José Júlio; José Falcão; Óscar Rosmano; Pepe Câmara (que foi o “Toureiro de Barrancos”); Luis Mariscal; Salvador Cortéz; Víctor Mendes; Antonio Ferrera; e Morante de la Puebla, que voltou este ano, um regresso pleno de simbolismo, à arena onde começou como novilheiro, entre tantos outros.

Este é o ciclo taurino enraizado no coração dos Barranquenhos, que se repete nos dias seguintes e que renova o entusiasmo desta gente de fronteira, do interior mais profundo de Portugal.



Barrancos e as Ganadarias


O touro e as ganadarias sempre estiveram presentes no imaginário e na vida quotidiana dos Barranquenhos. O touro enquanto elemento real e simbólico ao longo do tempo no campo e na mente das pessoas que habitam neste território de fronteira, paredes meias com a Andaluzia e a Extremadura Espanholas.

Ganadarias como a dos Irmãos Fialho, cujos touros pastavam na Herdade das Russianas e, posteriormente, a de Couto de Fornilhos na Herdade das Mercês, ambas no concelho de Barrancos, são o exemplo provado da presença do touro nos campos de Barrancos, e a sua ligação ao meio rural em que se inserem.


A importância de ter mantido e manter esta tradição, não só para os Barranquenhos


Pela sua carga simbólica, com a celebração ininterrupta durante séculos, as corridas com touros de morte na Praça de Barrancos assumem uma importância única no viver não só desta gente, mas também no entender de todos aqueles que nos visitam e participam nos festejos tradicionais. Representam também uma grande relevância social, cultural e económica que não devemos desprezar. A tauromaquia, enquanto factor de desenvolvimento e mola propulsora da economia local, tem o seu apogeu nas tradicionais Festas de Agosto em Barrancos.


A importância da legalização


Convém salientar o facto de sermos a única Terra deste País em que existem Touros de Morte, após a lide em Praça.

Durante séculos houve sempre um deferimento/aceitação tácita por parte do poder, mesmo que contrariando as leis portuguesas vigentes. A cumplicidade foi determinante, principalmente durante os anos finais da Monarquia, na 1.ª República, na vigência do Estado Novo e com o advento da democracia após o 25 de Abril de 1974, começaram a ser levantadas objecções e alguns obstáculos à sua continuação. Foram as multas aplicadas às sucessivas Comissões de Festas e aos seus membros. Mais tarde, já na década de noventa do século passado, foram as Providências Cautelares, as célebres coimas aprovadas pelo Governo de então, que penalizavam além dos membros das Comissões de Festas, o ganadeiro, o próprio Presidente da Câmara Municipal duplamente – enquanto eleito e representante da edilidade e como cidadão (?).

De realçar também os inúmeros processos movidos pelas organizações ditas defensoras dos animais e o aproveitamento por parte de alguma comunicação social, que mediatizou nem sempre da melhor maneira as “Festas” de Barrancos.

E finalmente as atitudes dúbias do próprio Poder Central (Governo e Assembleia da República) face a uma forma cultural específica e diferente do resto do País, que só tinha que respeitar e consagrar na Lei (o que só veio a acontecer com a aprovação de uma excepção para Barrancos, através da Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho, aprovada na Assembleia da República após proposta conjunta do CDS/PP, PSD e PCP). Esta Lei de excepção foi aprovada com os votos maioritários destes partidos e de cinco deputados do PS.

Convirá referir que na década de noventa do século passado (séc. XX), a comunicação social (imprensa, rádio e televisões) deram uma projecção inusitada à nossa “Fêra” e catapultaram Barrancos para uma visibilidade mundial nunca antes alcançada. Aproveitando esta situação começaram as associações ditas protectoras dos animais a fazer lobby contra as touradas, e a atacarem esta comunidade de fronteira, diferente nos seus usos e costumes, bem como na sua especificidade cultural entretanto reconhecida pelos órgãos do Município de Barrancos.

Com a finalidade de proteger as nossas Festas anuais, a Câmara Municipal de Barrancos em reunião ordinária realizada em 28 de Março de 2012, deliberou por unanimidade declarar a Tauromaquia como Património Cultural Imaterial Municipal, com vista à sua salvaguarda. Posteriormente e no seguimento da decisão da Câmara, a Assembleia Municipal reunida em sessão ordinária a 26 de Abril de 2012 deliberou ratificar a decisão da Câmara.

Estas decisões dos órgãos municipais representativos da população Barranquenha, mais não visam do que proteger a nossa tradição cultural ligada ao touro bravo, sempre presente e elemento principal e aglutinador das nossas festividades.


A importância do futuro


Sabemos a importância de que se reveste manter estas tradições para o futuro, e julgamos que a tradição taurina de Barrancos integrada no projecto colectivo que visa consagrar a Tauromaquia como Património Cultural Imaterial do País a que pertencemos, Portugal, só pode valorizar a mesma. Tendo a consciência de que é na diversidade cultural de um País que reside a sua maior riqueza, julgamos da maior importância candidatar a tauromaquia como um todo, composto de todas as diferentes formas de culturas tauromáquicas, sejam populares ou não, pois assim será a proposta integradora e devidamente enriquecida no seu conjunto.

Resta-nos afirmar que a Tourada Barranquenha, como Tauromaquia Popular vivida e afirmada durante séculos e nos nossos dias, é também forte impulsionadora da economia e do desenvolvimento e factor de coesão social desta terra Barranquenha que nos enche de orgulho.



Em Monsaraz, Barrancos e muitas outras localidades da margem esquerda do Guadiana (cujos nomes se omite de modo a evitar a sanha persecutória e proibicionista dos anti-taurinos), bem como, até recentemente, no Penedo, aldeia localizada na Serra de Sintra (Morais, 1994/1995), as festas também incluem pelo menos uma vacada. Mas o que as distingue é o facto de nelas se praticar o sacrifício taurino (Capucha, 1994/1995). Esse sacrifício tem a sua génese em bodos aos pobres a que estavam obrigados os “homens bons” das terras, normalmente, por altura do Espírito Santo e noutras datas com significado religioso. Nesse sentido, como escreveu Pedro Romero de Solís (1995), a carne de toiro é uma carne divina. Num contexto em que aos pobres estava vedado comer carne de bovino, por carência de meios, a interdição era e é suspensa no dia da festa. Esta é, no fundo, outra forma de neutralizar o efeito diluidor dos laços comunitários que as desigualdades sociais geram, refazendo assim o sentido de coletivo humano das comunidades celebrantes do sacrifício.

O facto de se sacrificarem toiros bravos, e não de gado manso, liga-se à crença “quase mágica” acerca dos atributos genesíacos e de virilidade dos toiros bravos e da sua carne (Capucha, 2002).

Monsaraz

Na maioria dos locais onde estes sacrifícios se realizam, o toiro é largado num recinto fechado – em Monsaraz é na praça de toiros existente no Castelo – onde, depois de corrido como numa largada, é preso por uma corda que o submete e permite a morte através de um processo semelhante ao utilizado nos matadores até há muito pouco tempo: um “pontilheiro” com perícia secciona a espinal medula do animal, junto à nuca, matando-o instantaneamente. Morto o animal as pessoas rodeiam-no e tocam-no, levando as crianças a fazer o mesmo, como num agradecimento pela festa que proporcionou e pela refeição ritualizada que irá permitir. Um magarefe que previamente adquiriu a carne, ou agindo sob encomenda da Comissão de Festas, prepara a carcaça para que a carne seja vendida (já não é oferecida como teria sido em tempos de maior penúria coletiva). Numa rua ou largo da aldeia é acesa uma fogueira onde na própria noite se juntam as famílias e os amigos para assar e provar a carne adquirida, em muitos casos no único dia do ano em que se ingere carne de bovino.

Em Barrancos já não se acende a fogueira senão no Natal. Mas a carne dos toiros mortos nas festas em honra de Nossa Senhora da Conceição são cozinhados em todas as casas – privadas e restaurantes – segundo a popular receita de “carne de toiro com tomate”. Esta está porém longe de ser a única diferença em relação aos casos que temos vindo a referir.

Em primeiro lugar, o ritual tauricida decorre durante três dias, a 29, 30 e 31 de agosto, depois da procissão no dia 28, que marca o início de uma “fêra” (feira) frenética, intensa, disruptiva, no sentido em que cria um período de exceção na vida da vila, bem exemplificado pelo facto de os pais se despedirem da família até ao fim da festa. Nos dias 29 e 30 de manhã são largados num dos extremos da vila dois toiros em cada dia e um de cada vez. O encerro nas jaulas colocadas no Largo principal, frente à Igreja, decorre com cada toiro percorrendo uma rua íngreme até irromper no recinto vedado com os “tabuados”, onde estão localizados dois pequenos curros, semelhantes às jaulas de transporte, mas neste caso fixos. Segundo uma técnica específica cada um dos toiros é amarrado com uma corda e fechado num dos dois curros.

Os tabuados, totalmente construídos em madeira e com uma estrutura e um método de construção únicos no mundo, foram montados dias antes pela Câmara Municipal. Suportados por pilares unidos por barrotes transversais que servem de tranqueiras, são encimados por bancadas cuja ocupação, à exceção de uma zona reservada a convidados e à banda de música, é paga. Quem fica por baixo delas, espreitando entre as tranqueiras ou arriscando colocar-se dentro do recinto escapando apenas quando o toiro se acerca, participa gratuitamente. Noutros tempos, os tabuados eram mandados construir pelos lavradores, que nas bancadas colocavam os seus convidados e os familiares dos assalariados permanentes das suas herdades. Como em muitas outras coisas, também neste aspeto o poder autárquico substitui agora antigo poder do latifúndio.

Depois de encerrados os toiros é tempo de almoçar e descansar, porque as noites são de festa carregada.

Barrancos

A meio da tarde todos se dirigem para o largo, para a tourada. Esta inicia-se, como nas corridas formais em Espanha, com o passeio dos toureiros em apresentação ao público, precedidos pelos membros da Comissão de Festas que os contratou, do mesmo modo que tratou e trata de todos os aspetos da organização da “fêra”. O cornetim toca para a saída do primeiro toiro (tecnicamente falando, trata-se de um novilho adquirido a uma ganadaria de prestígio), que é lidado de capote, depois bandarilhado e toureado de muleta pelo primeiro dos dois matadores de toiros contratados e respetiva quadrilha de bandarilheiros. No fim da faena é sua função matar o toiro a estoque (a espada de matar toiros). O agrado ou desagrado do público resulta do nível do desempenho, destacando-se claramente a eficácia no uso da espada, podendo dar origem à concessão de uma orelha, duas orelhas ou estas duas e rabo, sempre a pedido do público e por decisão do “diretor de corrida” (um aficionado de prestígio que a Comissão de Festas convida para a função). Um mau desempenho dá origem a fortes broncas, chegando-se por vezes perto da agressão ao toureiro infeliz ou incompetente na sua atuação.

O mesmo se passa com o segundo toiro e no dia seguinte com outros dois toiros. No terceiro dia, a 31 de agosto, para além de um novilho corrido de modo semelhante aos primeiros quatro dos dias anteriores, corre-se também uma vaca. Mas esta não é lidada por um profissional, mas sim pelos aficionados, em particular os jovens, que a recortam, citam e pegam de caras. Na sequência de uma dessas pegas a vaca é introduzida na “sociedade dos ricos”, uma coletividade situada num dos cantos da praça, na diagonal de uma outra designada “sociedade dos rapazes”. Após as peripécias provocadas pelo animal nas instalações da associação, volta à praça para ser de novo pegada e morta com um golpe de “chopa”.

Barrancos

Esta festa decorreu de forma clandestina desde a proibição dos toiros de morte em Portugal pelo regime fascista, sendo porém tolerada pelas autoridades que “fechavam os olhos” ao que se passava, de modo que nenhum autarca, agente policial ou outra pessoa alguma vez testemunhara a morte dos toiros, por se ausentarem no momento da estocada, de modo a não poderem depor em Tribunal anualmente convocado para averiguações. Até que em 1999, por ação de uma associação animalista a que deu seguimento um Juíz de um Tribunal do Porto, foi emitida uma providência cautelar no sentido de impedir a realização das touradas. Essa proibição seria recebida como um golpe fatal no “orgulho” e na identidade barranquenha, pelo que todo o povo, unanimemente (mesmo os que não gostam da festa viram o ataque como um abuso intolerável), decidiu desobedecer e lutar determinadamente pelo seu direito. Durante vários anos o “caso de Barrancos” ocupou o palco mediático principal do país, levando à generalização do debate em torno dos direitos culturais, entre muitos outros tópicos que esta festa, como “fenómeno social total”, envolve. Até que uma iniciativa do Presidente da República gerou a alteração da lei, deixando a morte do toiro nas arenas de ser proibida em Portugal, desde que corresponda a uma tradição ininterrupta com mais de 50 anos. Em contrapartida, a mesma lei proibiu a “sorte de varas” que, por essa altura, era praticada com alguma frequência nas Praças de toiros de Vila Franca de Xira, Moita do Ribatejo e Angra do Heroísmo. E assim prossegue Barrancos, ano após ano, a celebrar efusiva e entusiasticamente o seu título de única localidade portuguesa onde os toiros são mortos a estoque, na arena.


REGISTOS GRÁFICOS


Cartazes de Barrancos (2009-2019)
Ano Festas de N. S.ª da Conceição Festejos Taurinos Curro de Touros
2019
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2018
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2017
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2016
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2015
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2014
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2013
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2012
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2011
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2010
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2009
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Cartazes de Monsaraz
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA/CITADA

  • Capucha, Luís (1994/1995). O Espelho Quebrado: versus e reversus nas tauromaquias populares. Mediterrâneo (Tauromaquias Populares e Outros Estudos), 5/6, pp. 33-56.
  • Capucha, Luís (2002). Barrancos na ribalta, ou a metáfora de um país em mudança. Sociologia, problemas e práticas. 39, pp. 9-38.
  • Capucha, Luís e Marco Gomes (2016). "Tauromaquia, Cultura com Sabor de Festa". In LNEC - CRIA (Ed.), Congresso Ibero Americano Património, suas Matérias e Imatérias, Lisboa.
  • Morais, António Manuel (1994/1995). A corrida à corda. Tradição centenária. Mediterrâneo (Tauromaquias Populares e Outros Estudos), 5/6, pp. 57-64.
  • Solís, Pedro Romero de (1995). La dimensión sacrificial de la Tauromaquia Popular. Information sur les Sciences Sociales. Paris: Maison des Sciences de l’Homme et École Pratique des Hautes Études.